Homilia de São João Paulo II durante a Missa de Beatificação de Frederico Ozanam.
1. «O amor vem de Deus» (1 Jo 4, 7). O Evangelho deste dia apresenta-nos a figura do bom Samaritano. Mediante esta parábola, Cristo quer mostrar aos Seus ouvintes quem é o próximo citado no maior mandamento da Lei divina: «Amarás ao Senhor teu Deus, com todo o teu coração, com toda a tua alma, com todas as tuas forças e com todo o teu entendimento, e ao teu próximo como a ti mesmo» (Lc 10, 27). Um doutor da Lei perguntava o que devia fazer para ter parte na vida eterna; encontrara nestas palavras a resposta decisiva. Sabia que o amor de Deus e do próximo é o primeiro e o maior dos mandamentos. Apesar disso, pergunta: «Quem é o meu próximo?» (Lc 10, 29).
O facto de Jesus propor um Samaritano, como exemplo para responder a esta pergunta, é significativo. Com efeito, os Samaritanos não eram particularmente estimados pelos Hebreus. Além disso, Cristo compara a conduta deste homem àquela de um sacerdote e de um levita, que viram o homem ferido pelos salteadores e deixado meio morto na estrada, e continuaram a sua caminhada sem lhe prestar socorro. Ao contrário o Samaritano, que ao ver o homem sofredor, «encheu-se de piedade» (Lc 10, 33); a sua compaixão levou-o a uma série de acções. Em primeiro lugar ligou-lhe as feridas, depois levou-o para uma estalagem a fim de que cuidassem dele; e, antes de partir, deu ao estalajadeiro o dinheiro necessário para se ocupar do ferido (cf. Lc 10, 34-35). O exemplo é eloquente. O doutor da Lei recebe uma resposta clara à sua pergunta: quem é o meu próximo? O próximo é todo o ser humano, sem excepção. É inútil perguntar sobre a sua nacionalidade, a sua pertença social ou religiosa. Se está em necessidade, é preciso ir ajudá- lo. É isto que pede a primeira e a maior Lei divina, a lei do amor de Deus e do próximo.
Fiel a este mandamento do Senhor, Frederico Ozanam acreditou no amor, no amor que Deus tem por todos os homens. Ele mesmo se sentiu chamado a amar, dando o exemplo de um grande amor de Deus e dos outros. Ia ao encontro de todos os que tinham mais necessidade de ser amados, daqueles a quem Deus-Amor não podia ser efectivamente revelado senão pelo amor duma outra pessoa. Ozanam descobriu nisto a sua vocação, viu o caminho para o qual Cristo o chamava. Encontrou nisto o seu caminho rumo à santidade. E percorreu- o com determinação.
2. «O amor vem de Deus». O amor do homem tem a sua fonte na Lei de Deus; a primeira leitura do Antigo Testamento demonstra-o. Nela encontramos uma descrição pormenorizada dos actos do amor ao próximo. É como que uma preparação bíblica para a parábola do bom Samaritano.
A segunda leitura, tirada da primeira Carta de São João, desenvolve o que significa a palavra «o amor vem de Deus». O Apóstolo escreve aos seus discípulos: «Caríssimos, amemo-nos uns aos outros, porque o amor vem de Deus e todo aquele que ama, nasceu de Deus e conhece-O. Aquele que não ama, não conhece a Deus, porque Deus é amor» (1 Jo 4, 7-8). Esta palavra do Apóstolo constitui verdadeiramente o centro da Revelação, o ápice para o qual nos conduz tudo o que foi escrito nos Evangelhos e nas Cartas apostólicas. São João prossegue: «Nisto consiste o Seu amor: não fomos nós que amámos a Deus, mas foi Ele que nos amou e enviou o Seu Filho como propiciação pelos nossos pecados» (ibid., 10). A remissão dos pecados manifesta o amor que por nós tem o Filho de Deus feito homem. Então, o amor do próximo, o amor do homem, já não é apenas um mandamento. É uma exigência que deriva da experiência vivida do amor de Deus. Eis por que João pode escrever: «Se Deus nos amou assim, também nos devemos amar uns aos outros» (1 Jo 4, 11).
O ensinamento da Carta de João prolonga- se; o Apóstolo escreve: «Ninguém jamais viu a Deus; se nos amarmos uns aos outros, Deus está em nós e o Seu amor é perfeito em nós. Nisto conhecemos que estamos n’Ele e Ele em nós, porquanto nos deu o Seu Espírito» (1 Jo 4, 12-13). O amor é então a fonte do conhecimento. Se, por um lado, o conhecimento é uma condição do amor, por outro, o amor faz aumentar o conhecimento. Se permanecermos no amor, temos a certeza da acção do Espírito Santo que nos faz participar no amor redentor do Filho, que o Pai enviou para a salvação do mundo. Ao reconhecermos Cristo como Filho de Deus, permanecemos n’Ele e, por Ele, permanecemos em Deus. Pelos méritos de Cristo, acreditámos no amor, conhecemos o amor que Deus tem por nós, sabemos que Deus é amor (cf. 1 Jo 4, 16). Este conhecimento mediante o amor é de algum modo o elemento essencial da vida espiritual do cristão. «Quem permanece no amor permanece em Deus e Deus nele» (ibid.).
3. No contexto da Jornada Mundial da Juventude, que este ano tem lugar em Paris, procedo hoje à beatificação de Frederico Ozanam. Saúdo cordialmente o Senhor Cardeal Jean-Marie Lustiger, Arcebispo de Paris, cidade onde se encontra o túmulo do novo Beato. Alegrome também com a presença neste evento de Cardeais e de Bispos de numerosos países. Saúdo com afecto os membros da Sociedade de São Vicente de Paulo, que do mundo inteiro vieram para a beatificação do seu principal fundador, assim como os representantes da grande família espiritual herdeira do espírito de São Vicente. Os vínculos entre vicentinos foram privilegiados desde as origens da Sociedade, pois foi uma Filha da Caridade, Irmã Rosalie Rendu, quem guiou o jovem Frederico Ozanam e os seus companheiros rumo aos pobres do bairro Mouffetard, em Paris. Caros discípulos de São Vicente de Paulo, encorajo- vos a pôr em comum as vossas forças para que, como desejava o vosso inspirador, os pobres sejam cada vez mais amados e servidos e Jesus Cristo, honrado nas suas pessoas!
4. Frederico Ozanam amava todos os necessitados. Desde a sua juventude, tomou consciência de que não bastava falar da caridade e da missão da Igreja no mundo: isto devia traduzir-se num empenho efectivo dos cristãos no serviço dos pobres. Estava assim em sintonia com a intuição de São Vicente: «Amemos a Deus, meus irmãos, amemos a Deus, mas que isto aconteça com os nossos braços e com o suor do nosso rosto» (São Vicente de Paulo, XI, 40). Para o manifestar de maneira concreta, com a idade de vinte e cinco anos, com um grupo de amigos, criou as Conferências de São Vicente de Paulo, cuja finalidade era a ajuda aos mais pobres, num espírito de serviço e de partilha. Bem depressa, estas Conferências difundiram-se fora de França, em todos os países da Europa e do mundo. Eu mesmo, como estudante, antes da segunda guerra mundial, fiz parte de uma delas.
O amor pelos mais miseráveis, por aqueles de quem ninguém se ocupa, já está no centro da vida e das preocupações de Frederico Ozanam. Ao falar destes homens e destas mulheres, ele escreve: «Deveríamos cair aos seus pés e dizer- lhes com o Apóstolo: “Tu es Dominus meus”. Vós sois os nossos mestres e nós seremos os vossos servidores; sois para nós as imagens sagradas deste Deus que não vemos e, não sabendo amar doutra maneira, nós O amamos nas vossas pessoas» (A Louis Janmot).
5. Ele observa a situação real dos pobres e procura um empenho cada vez mais eficaz, para os ajudar a crescer em humanidade. Compreende que a caridade deve levar a trabalhar pela reparação das injustiças. Caridade e justiça caminham a par e passo. Tem a coragem lúcida dum empenho social e político de primeiro plano numa época agitada da vida do seu país, pois nenhuma sociedade pode aceitar a miséria como uma fatalidade, sem que a sua honra não seja atingida. É assim que se pode ver nele um precursor da doutrina social da Igreja, que o Papa Leão XIII desenvolverá alguns anos mais tarde na Encíclica Rerum novarum.
Diante das pobrezas que oprimem muitos homens e mulheres, a caridade é um sinal profético do empenho do cristão no seguimento de Cristo. Convido, pois, os leigos e de modo particular os jovens a darem prova de coragem e de imaginação, a fim de trabalharem para a edificação de sociedades mais fraternas, onde os mais necessitados sejam reconhecidos na sua dignidade e encontrem os meios para uma existência respeitável. Com a humildade e a confiança incondicional na Providência, que caracterizavam Frederico Ozanam, tende a audácia da partilha dos bens materiais e espirituais com aqueles que estão na miséria!
6. O Beato Frederico Ozanam, apóstolo da caridade, esposo e pai de família exemplar, grande figura do laicado católico do século XIX, foi um universitário que assumiu uma parte importante no movimento das ideias do seu tempo. Estudante, professor eminente primeiro em Lião e depois em Paris, na Sorbona, teve em vista antes de tudo a investigação e a comunicação da verdade, na serenidade e no respeito das convicções daqueles que não partilhavam as suas. «Aprendamos a defender as nossas convicções sem odiar os nossos adversários, escrevia ele, a amar aqueles que pensam diversamente de nós [...] lamentemo- nos menos dos nossos tempos e mais de nós mesmos» (Cartas, 9 de Abril de 1851). Com a coragem do crente, denunciando todos os egoísmos, ele participa activamente na renovação da presença e da acção da Igreja na sociedade da sua época. Conhece-se também o seu papel na instituição das Conferências da Quaresma nesta catedral de Notre- Dame de Paris, com o objectivo de permitir aos jovens receber um ensinamento religioso renovado, ante as grandes questões que lhes interrogam a fé. Homem de pensamento e de acção, Frederico Ozanam continua a ser para os universitários do nosso tempo, professores e estudantes, um modelo de empenho corajoso capaz de fazer ouvir uma palavra livre e exigente, na busca da verdade e na defesa da dignidade de toda a pessoa humana. Que seja também para eles um apelo à santidade!
7. A Igreja confirma hoje a escolha de vida cristã feita por Ozanam, assim como o caminho que assumiu. Ela diz-lhe: Frederico, o teu caminho foi deveras a via da santidade. Passaram mais de cem anos, e eis o momento oportuno para redescobrir este caminho. É preciso que todos estes jovens, mais ou menos da tua idade, reunidos em tão grande número em Paris, provenientes de todos os Países da Europa e do mundo, reconheçam que esta estrada é também deles. É preciso que compreendam que, se quiserem ser cristãos autênticos, devem empreender este mesmo caminho. Oxalá abram melhor os olhos da própria alma às necessidades tão numerosas dos homens de hoje. Compreendam estas necessidades como desafios. Cristo chama- os, cada um pelo seu nome, a fim de que cada um possa dizer: eis o meu caminho! Nas opções que fizerem, a tua santidade, Frederico, será confirmada de modo particular. E grande será a tua alegria. Tu, que já vês com os teus olhos Aquele que é o amor, sê também um guia em todos os caminhos que estes jovens vão escolher, seguindo hoje o teu exemplo!